Finalista Prêmio São Paulo de Literatura 2024
Categoria Melhor Romance
Luiz Ruffato escreve sobre Os Dias de Sempre
Quando apareceu, em 2013, com A condição indestrutível de ter sido,
Helena Terra já era uma escritora madura, inserida na melhor tradição da ficção introspectiva, aquela na qual o leitor recebe, de forma privilegiada, a confissão do narrador, estabelecendo vínculos de empatia, que, ao fim e ao cabo, espelha as nossas próprias expectativas e frustrações. Não é diferente o que nos oferece a história que vai contada neste novo romance, Os dias de sempre. Se, no livro de estreia, a autora expunha a conturbada paixão da protagonista por um homem casado, neste, agora, acompanhamos o depoimento de Mariana, uma mulher da alta classe média, em sua tentativa de compreender-se e compreender o universo no qual gravitam as pessoas que conformam sua existência.
Com personagens desenhados com mão firme, complexos e profundos,
Helena Terra lança luz, com maestria, sobre um recôndito raras vezes
frequentado pela literatura, o das obscuras relações entre os que servem e os que são servidos dentro de uma sociedade desigual e desumana como a brasileira. Se o foco principal é a busca desesperada de Mariana por um leito de hospital para Nena, uma mulher que, “aos treze anos, com um buquezinho de flores na mão e uma trouxinha de pertences”, foi entregue à sua família para cuidar da casa, a narrativa se espraia e se agudiza em retornos e avanços no tempo, nos quais vamos reconhecendo a crônica do próprio país, principalmente a vocação escravocrata que persiste ainda hoje.
Mariana tem consciência do lugar privilegiado em que habita, filha de um médico, Alberto, que ascendeu socialmente, e de Júlia, legítima
representante da aristocracia rural gaúcha, nascida e criada numa cidade do interior, vivendo numa imensa moradia com seus irmãos, tratados ao longo de todo o livro como “os gêmeos” (sem nome, sem identidade própria).
Assim, ela evoca o papel basilar de Nena no núcleo doméstico, que
acompanha desde a constituição até a completa dissolução: “o que
aconteceu há mais de uma década e antes e, também, depois dessa época, está no presente, como se todos os dias fossem o presente”, constata.
Em Os dias de sempre, Helena Terra demonstra, de forma cabal, as
imbricações inevitáveis entre memória pessoal e contexto político, numa
reflexão necessária e urgente – justificando, assim, um lugar de destaque no cenário da literatura contemporânea.
Luiz Ruffato
Romances
Novela
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Raduan Nassar escreve sobre o A Condição Indestrutível de Ter Sido
A condição indestrutível de ter sido
Helena Terra,
este teu leitor poderia parafrasear o comentário das
orelhas do livro pela pertinência de certas observações,
ainda que não detentor de toda aquela erudição.
Limito-me a afirmar que A CONDIÇÃO INDESTRUTÍVEL DE TER SIDO, não obstante a narrativa que empurra o leitor, é antes de tudo linguagem, com recorrência a signos correlatos, comportando reflexões (algumas um tanto complexas a exigir releitura), rigor, ousadia, poesia, incluindo imagens insólitas/fascinantes, e até alguma ambiguidade, em um amálgama personalíssimo.
Daí, Helena, não ter entendido ainda a dedicatória no
exemplar com que você me presenteou, pois senti uma voz inconfundível, a não me dever nada.
Faz anos que estou descostumado de leituras, apesar disso foi um desfrute te ler. Peço, sim, desculpas pelo atraso da resposta, este ancião, por vários motivos, tem andado muito, mas muito atrapalhado.
Obrigado, Helena, e tudo de bom.
Com afeto,
Raduan Nassar
Maria Valéria Rezende escreve sobre o Bonequinha de Lixo
Bonequinha de lixo
DELICADEZA, FORÇA E INTELIGÊNCIA
Delicadeza e força, reflexão e rapidez, candura e agudeza crítica, coisas que dificilmente se equilibram, encontram-se na medida certa neste romance, abrindo-nos os olhos para diversos ângulos do panorama nebuloso neste momento enigmático de nossa vida sobre o planeta Terra. O mundo visto pelos olhos de uma adolescente e dito com palavras claras e diretas, de quem não espera mais nada dos outros e sabe que terá de assumir suas próprias escolhas, abrir seus caminhos por conta própria. O mundo que lhe ofereceram não a engana mais. Já nas primeiras páginas veio-me à memória outro romance que, como este, marcou o início de um processo de mudanças que até hoje não respondeu por inteiro às inquietações e desejos ali revelados: há exatos setenta anos publicava-se o “Apanhador em campo de centeio”, a voz de um adolescente da alta burguesia norte-americana a relatar sem pejo seu desconcerto e suas falhas diante das exigências, comportamentos e hipocrisia de seu meio social. Nisto se resume a semelhança entre o que leremos aqui e o livro de J.D.Salinger. Li o “Apanhador” na minha adolescência, de par com “O segundo sexo” de Simone de Beauvoir. Data daí minha consciência da longa luta à nossa frente, para desmontar o patriarcalismo machista que tanto mal tem feito.
A voz da “bonequinha” que aqui fala, tão plausível e sensata, contraditoriamente impiedosa e empática para com as dores e erros dos adultos, é muito mais informada e racional, é uma voz de mulher, não se queixa nem choraminga como Holden Caulfield, é capaz de analisar detida e racionalmente o que vê, revelando que a luta avançou, sim, mas ainda não o bastante. O perigo ainda espreita e ataca, com mais violência, talvez nos seus estertores. Haverá que ter coragem, dar-se as mãos e levantar-se depois de cada queda, seguir tecendo uma forte teia solidária entre as mulheres, que ultrapasse outras barreiras sociais e, com sua luta, as derrube. Obrigada, Helena. Nada mais será como antes.
Maria Valéria Rezende